Dispensa por recusa à vacina pode ser considerada abusiva
O Ministério do Trabalho e Previdência publicou, no início de novembro, a Portaria nº 620, que estabelece, em seu artigo 1º, a proibição da adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho ou de sua manutenção. A portaria considera prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação.
Merece registro que estas linhas não têm a pretensão de discutir a temática envolvendo eventual inconstitucionalidade quanto à extrapolação dos limites do poder regulamentar da Administração Pública (ministro de Estado) e a respeito do princípio da legalidade quanto à alteração de norma federal envolvendo a portaria, que não tem força de lei stricto sensu.
Há quem sustente que empregados que não comprovarem a vacinação devam ser advertidos, suspensos ou dispensados, inclusive por justa causa, com base na tese de que a saúde e a segurança do trabalho é garantia constitucional que objetiva a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança e de que seja dever do empregador a manutenção de ambiente do trabalho seguro e salutar. E mais: que o descumprimento de instruções de segurança e medicina do trabalho ensejaria falta grave por parte do empregado, nos termos do parágrafo único do artigo 158 da CLT.
Não é, com efeito, menos exato que a decisão do STF estabeleceu a compulsoriedade da vacinação (sem admitir a “vacinação forçada”), “podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes” (ADI nº 6586). Todavia não há nenhum dispositivo legal que impeça o empregador de barrar o direito ao trabalho, direito assegurado constitucionalmente nos artigos 5º e 7º da Constituição Federal.
Não é novidade o estabelecimento de vacinação obrigatória, embora tenha causado revoltas no início do século passado, como pode ser visto, por exemplo, nos artigos 26 e 27, do Decreto Nº 78.231, de 12 de agosto de 1976 (PNI), e mesmo no caso dos militares de qualquer uma das forças singulares, como era estabelecido pela Portaria Normativa nº 1.631/MD, de 27/6/2014, e continuou previsto na Portaria Normativa nº 94/GM-MD, de 4/11/2020, que lhe substituiu.
Vale mencionar que a NR 32 estabelece orientações básicas para a implementação de medidas de proteção à segurança e à saúde dos trabalhadores, e, em seu conteúdo, para os trabalhadores em serviços de saúde, submetidos a condições de risco biológico, disponha sobre o direito de oposição à vacinação obrigatória, desde que o opositor assine um termo de responsabilidade.
Importante observar que a referida norma regulamentadora é pré-existente ao coronavírus, ou seja, possivelmente sofrerá alterações, mas já previa a oposição condicionada à concordância com a assinatura do referido termo.
Ainda que antes da multicitada portaria, ou ainda que declarada a sua inconstitucionalidade, para o enquadramento da conduta (do empregado resistente à vacinação) seria imprescindível a subsunção ao conteúdo do artigo 482, “h”, c/c artigo 158, parágrafo único, todos da CLT. Porém, seria uma interpretação extensiva em matéria de Direito punitivo (do Trabalho), o que também fere os mais elementares critérios hermenêuticos.
Agora, em razão da vigência do referido ato ministerial, embora a mesma não possa gerar presunção e não possa dispor sobre a ampliação do rol do artigo 1º da Lei 9.029/95, já que extrapola seu poder regulamentar, ainda assim é temerária a tomada de qualquer decisão no sentido de aplicar a pena máxima ao empregado, por força do §2º do artigo 1º, final, da Portaria nº 620.
E, como bem se sabe, dispensa discriminatória é proibida em nosso ordenamento jurídico por violar o princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, valendo o critério independentemente da Portaria nº 620.
É importante registrar que há manifestação do Ministério Público do Trabalho, através da Procuradoria-Geral do Trabalho, especificamente do Grupo de Trabalho Nacional Covid-19, conforme nota técnica intitulada “Sobre Cobertura Vacinal como Fator de Proteção Coletiva e de Respeito aos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e Trabalhadoras no Meio Ambiente do Trabalho”, pelo qual insta aos empregadores que procedam à exigência de comprovação de vacinação de seus trabalhadores e trabalhadoras (observados o esquema vacinal aplicável e o cronograma vigente) e de quaisquer outras pessoas (como prestadores de serviços, estagiários etc.), como condição para ingresso no meio ambiente laboral, ressalvados os casos em que a recusa do trabalhador seja devidamente justificada, mediante declaração médica fundamentada em contraindicação vacinal descrita na bula do imunizante. Além disso, o texto da nota técnica incentiva a realização de campanhas internas de esclarecimento e incentivo à vacinação, bem como antecipem exames médicos dos empregados. Todas as medidas do referido documento se dão para que se evite prática de “justa causa” patronal (artigo 483, “c”, da CLT) por exposição dos trabalhadores a “perigo manifesto de mal considerável”.
Sem prejuízo do quanto aqui já tratado, é fundamental destacar que o ministro Luís Roberto Barroso, em decisão monocrática em tutela de urgência, reconheceu a presença de “ato do poder público alegadamente violador dos preceitos fundamentais, consistentes no direito à saúde, à vida e à segurança do meio ambiente do trabalho”. Ele suspendeu a vigência de parte da Portaria MTPS nº 620/2021 no bojo da ADPF 898, caso que já está pautado para julgamento pelo plenário virtual (de 26 de novembro a 3 de dezembro) do Supremo Tribunal Federal, para decisão do colegiado sobre o mérito da ADPF (à qual serão apensadas ADPFs 900, 901, 905). Há, na mencionada decisão, todavia, “ressalva quanto às pessoas que têm expressa contraindicação médica, fundada no Plano Nacional de Vacinação contra COVID-19 ou em consenso científico, para as quais deve-se admitir a testagem periódica”. Para essas pessoas, ao que consta, não seria autorizada a exigência da comprovação da vacinação.
Como se observa, o tema é polêmico e tanto a contratação como a dispensa do empregado por recusa ou não comprovação à vacinação, ainda que seja desejável o contrário, com vacinação de 100% dos colaboradores de uma empresa, é, no mínimo, de defesa temerária, carecendo, de respaldo diante da ausência de previsão legal expressa que a assegure, podendo ser considerada abusiva e discriminatória, neste momento, por ofensa a princípios constitucionais previstos no artigo 5º da Constituição Federal, mesmo com a existência de nota técnica do Ministério Público do Trabalho. Mas ainda há muito a ser pacificado quanto às questões relativas ao tema, sendo inclusive possível que a pacificação advenha da apreciação pelo STF das mencionadas ADPFs 898, 900, 901 e 905.
Deixe um comentário